Toxicidade: a comunidade de esports tem salvação?

Foto: Reprodução/Carrefour

No dia 22 de fevereiro, alguns dias antes da escrita desse texto, a jovem gamer Ingrid Oliveira Bueno da Silva, de 19 anos, conhecida no meio do esports como Sol, foi brutalmente assassinada por um colega de jogo, Guilherme Alves Costa, com diversas facadas (confira aqui a matéria).

Os motivos que levaram ao assassinato da então jogadora de Call of Duty: Mobile foram revelados pelo próprio assassino, que após o crime, confessou nas redes sociais o que tinha acabado de fazer. Em um texto enviado a uma blogueira, o jovem disse sentir “ódio pelas mulheres”, e no macabro vídeo onde está sendo preso, sorri e diz que “sabe muito bem o que fez”.

O termo para o ódio à mulher é chamado de misoginia. Bem, para muitos gamers, a simples menção a essa palavra já gera uma enorme lista de rages e várias tentativas frustradas de explicar qualquer ato motivado pelo machismo como “não tendo nada a ver”.  O termo gera revolta talvez pela sua aproximação com as pautas políticas progressistas, algo que no mundo gamer é tão reprimido quanto as próprias mulheres e outros grupos.

Muito além da política, da esquerda e direita, do capitalismo e comunismo, o que venho buscar aqui hoje é explicar o porquê e como ocorre o ódio da nossa comunidade, e se afinal, temos ou não salvação.

O ódio do dia-a-dia

Eu sou um jogador apaixonado por Counter-Strike. Jogo competitivamente, e demorei alguns anos para perceber que era muito melhor jogar com amigos em um time fechado do que entrar em partidas com pessoas aleatórias. Por quê? Bem, independentemente de qual jogo você goste, e principalmente porque esse é um texto voltado para toda a comunidade gamer, vou narrar uma pequena história genérica, que provavelmente qualquer um que já jogou alguma partida online irá se identificar.

Você liga seu computador, abre o jogo que você tanto gosta (CS, LoL, Dota, tanto faz), busca aquela partida ranqueada, encontra, aceita e entra no server. Até aí tudo bem. Nas fases preliminares do jogo, o aquecimento por exemplo, até algumas pequenas amizades são feitas, brincadeiras trocadas e algumas risadas acontecem.

A partida começa. Bem, nem você e nem eu, somos jogadores profissionais. Além disso, muitos de nós podemos achar meio duvidoso o jeito que as patentes são conquistadas. Mas, de qualquer modo, o fato é: todos nós erramos. O problema é que, o mínimo movimento errado, ou, nas palavras dos esports, “noobada”, pode desencadear uma série de xingamentos e toxicidades: “lixo”, “aprende a jogar”, “desinstala”, normalmente acompanhadas por uma série de palavrões.

Alguns agravantes ainda podem acontecer nas partidas. Algumas pessoas, simplesmente ao ouvir que um outro jogador do time não fala português, iniciam uma revolta pessoal: “kicka o boludo”. Os nossos ‘hermanos’ muitas vezes também não são um bom exemplo de civilidade, muitos deles se mostrando extremamente racistas em alguns momentos. Além da presença dos ‘manitos’, muitas vezes os próprios brasileiros acabam replicando falas e atitudes do tipo, com expressões que não terei coragem de colocar aqui.

Mas, no final, as jogadoras são os grupos mais afetados na comunidade de esports. São comuns ofensas e diminuições, mulheres que enfrentam frases como “volta para a cozinha” ou ainda insinuações sexuais de diversos tipos. Provavelmente, você conhece alguma menina gamer que se nega a falar durante a partida, por medo do que possa acontecer.

Você já deve ter presenciado alguma situação dessa. Perceber que existe um problema aí, muito além do campo político, seria uma atitude básica para melhorarmos como comunidade. Lembrar sempre que estamos ali para se divertir. A grande maioria de nós simplesmente não ganha dinheiro para estar jogando. Portanto, ninguém gosta de ser xingado, ainda mais em um momento de lazer e descontração.

Influências fora do server

Além dessas situações às quais estamos infelizmente acostumados, fora do server a comunidade está muitas vezes mal representada. O trágico caso citado no começo desse texto nos lembra disso, embora, infelizmente, não pare por aí.

O cenário de LoL foi surpreendido logo no começo do ano com uma sequência de acusações de assédio sexual contra diversos jogadores e pessoas do meio. A mais inacreditável, na minha opinião, veio logo no dia 05 de janeiro, gerando uma enxurrada de “exposeds”.

O treinador da Flamengo Academy, Guilherme Kake, foi acusado de pedir nudes para os jogadores do seu time, inclusive de menores de idade. Dois anos atrás, o jogador 4Lan já havia sido acusado de um assédio em uma festa após um evento de games. O icônico caster de LoL Gustavo “Docil” também sofreu acusações de se envolver com menores de idade, pedindo fotos nuas para elas, e Benjamin “Hyoga”, jogador do Santos, teve imagens de conversas publicadas onde simplesmente humilha e tortura psicologicamente sua ex-namorada.

Embora os casos ainda estejam sendo investigados, as amplas provas e testemunhas tornam a situação difícil para esses players. Contudo, a situação é muito mais marcantes para as vítimas. As ondas de exposição fizeram um proeminente nome do cenário se pronunciar. BrTT, hoje jogador da paiN, tuitou sobre como o cenário “está completamente um lixo”. Uma pequena luz no fim do túnel, não?

Filipe pancc, um promissor jogador de CS, também teve conversas expostas, onde tenta conseguir fotos seminuas de uma menor de idade. O mais recente caso envolveu o lendário fnx, do cenário de CS:GO, acusado de gravar, sem consentimento, as relações sexuais que teria tido com uma streamer do cenário e ainda divulgar o vídeo em grupos e para amigos. Fnx ainda não se pronunciou sobre o assunto, assim como a Imperial, time em que atuava na época.

Além disso, o que me assusta muito, e acho que deveria te assustar também, é ler os comentários dessas notícias, o que talvez seja uma das grandes provas de estômago da internet. A maior parte deles são tentativas de ou justificar os atos como certos, como se a vítima tivesse incitado o que aconteceu, ou tentar diminuí-la, desmoralizando as mulheres que sofreram com algum tipo de abuso. Talvez isso reflita um pouco o que, na minha opinião, é uma das coisas que mais falta na comunidade gamer: a empatia. Ninguém quer ser estuprado, e não é tão difícil imaginar o que uma pessoa que passou por isso deseja escutar após o ocorrido.

Infelizmente, também é comum a replicação de toxicidade entre os pró players. O bullying e as ofensas são marcas registradas de alguns deles, que se orgulham constantemente da “zoeira” praticada com seus colegas.

Será que tudo isso nos mostraria que somos, em parte, reflexos dos nossos ídolos?

Do outro lado da toxicidade

Falar que nós somos apenas cercados por mal exemplos ou por má atitudes também seria injusto. Além disso, essas atitudes são vistas em todos os esportes. Myke Tyson passou alguns anos preso devido a um estupro, e o famoso jogador de futebol Edmundo se envolveu em um acidente de carro durante um suposto racha, levando a morte 3 pessoas. Fazendo uma relação com os tão odiados “hacks” de jogos eletrônicos, o lendário ciclista Lance Armstrong foi pego em um antidoping, destruindo assim sua carreira.

Apesar disso tudo, algumas cenas incríveis saem do nosso cenário, como as lives que FalleN fez, por exemplo, para ajudar em diversas causas. Uma delas foi na época em que a barragem de Brumadinho se rompeu, com todo o dinheiro das transmissões indo para as vítimas. Fãs mais atentos percebem que até hoje a AK Asimov do lendário capitão recebe o nome de “SOS Brumadinho”. FalleN, por sinal, é um dos principais doadores do cenário. Recentemente, alegrou a todos comprando uma cadeira especial para um streamer tetraplégico.

Seria impossível falar de doação sem passar pelo queridinho do cenário de CS:GO, Gaules. São inúmeros casos de doações e hosts, quando ele passa a stream de outro jogador na sua para ajudá-lo a promovê-lo.

Mas, um caso em específico, visto pelos meus próprios olhos, talvez seja o melhor exemplo de que existe esperança no cenário de esports. Ao entrar no Facebook alguns dias atrás, me deparei com um post feito em um dos maiores grupos de CS:GO da rede social. Nesse post, um homem contava desesperado sua história.

Com filhos em casa e ele e sua esposa desempregada, tentava desesperadamente vender sua conta na Steam para prover o básico para sua família. O que eu vi me deu a esperança necessária para acreditar que podemos ser melhores. Uma enxurrada de doações foi vista no posts, propostas honestas e ofertas de ajudas de todos os tipos. O emocionante acontecimento é uma prova indiscutível que se nos unirmos em prol de algo louvável, não existe limite para onde poderíamos chegar.

Dentro do server, também podemos encontrar boas atitudes. Mesmo com toda a toxicidade, é também comum, embora até onde minha experiência diga que seja na minoria das vezes, encontrarmos pessoas bem-humoradas, felizes. Muitos de nós, por sinal, já fizemos amizades online. Pessoas que não conhecemos ao vivo, mas que nos geraram um grande conforto de dividir uma partida.

Afinal, existe esperança?

Logicamente, existe esperança. Mas é claro que ainda temos muito a evoluir. A compreensão de que nós somos uma comunidade tóxica, o que aparentemente muita gente ainda não aceita, seria um grande passo para a evolução.

Poderíamos começar recriminando, sem “passadas de pano”, os influenciadores que cometem erros. É lógico que toda acusação deve ser provada, mas o que acontece muitas vezes no mundo gamer é ao contrário da justiça. No cenário de esports, na maioria das vezes, a vítima é culpada sem chance de defesa.

Depois, nos unirmos por boas causas. Levantarmos bandeiras positivas, e englobar todo tipo de pessoa com respeito e carinho. Afinal, os próximos talentos dos cenários podem não ser apenas homens. Quantos prodígios já desistiram de serem algo devido ao próprio cenário? Infelizmente, só nós perdemos com isso.

Acredito em um futuro promissor, e por mais difícil que seja, continuarei acreditando. Imagina, entrar em uma partida e não sair de lá com nenhum sentimento de ódio e rancor. Loucura? Quem sabe um dia.

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Comentários 2
  1. O texto está top!!
    O cenário brasileiro é triste e acaba nos influenciando, é até difícil hoje em dia sair de um jogo de randons sem dar um rage. O mais incrível é que o cenário de CS não chega aos pés do dota 2.

  2. Excelente texto. Realmente o cenário sofre com preconceitos de toda maneira imaginável e isso limita, por muitas vezes, o potencial de pessoas boas que buscam crescimento em seu respectivo jogo.

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