Hell Clock, RPG de ação brasileiro com elementos de roguelike desenvolvido pela Rogue Snail, já está disponível na plataforma Steam. O jogo, que combina combates intensos e uma jogabilidade que remete às franquias Diablo e Hades, também oferece um mergulho histórico em uma das passagens mais macabras da história do Brasil: a Guerra de Canudos.


Um passeio rápido pela história antes de prosseguirmos
A Guerra de Canudos, tema central de Hell Clock, foi um dos conflitos mais brutais e marcantes da história do Brasil. No final do século XIX, logo após a Proclamação da República, o país vivia um período de instabilidade política, social e econômica, especialmente nas regiões mais pobres e esquecidas pelo novo regime.
Nesse contexto surgiu o povoado de Canudos, liderado por Antônio Conselheiro e formado por milhares de sertanejos, ex-escravizados e pessoas marginalizadas em busca de dignidade e uma vida mais justa. A comunidade cresceu rapidamente, adotando um modo de vida coletivo e autônomo, o que passou a ser visto como uma ameaça pelo governo republicano e a igreja.
A resposta do Estado foi violenta. Quatro expedições militares foram enviadas ao sertão da Bahia. A última, em 1897, resultou na destruição completa do povoado e no massacre quase total de sua população.


Um Diablo do Nordeste
Hell Clock traz uma infernalização notável para a história real e macabra de Canudos, o que, logo de cara, se mostra um grande acerto. No jogo, assumimos o papel de Pajéu, a reencarnação de um dos guerreiros mortos pelas mãos do Estado, que busca, além de vingança, o repouso eterno para as almas das demais vítimas desse grande massacre.
Algo que me chama a atenção aqui é como o jogo, mesmo tratando de um tema tão pesado e real, consegue transmitir uma certa leveza. A abordagem sombria usada para contar a história de Canudos é equilibrada por elementos que suavizam o impacto, como a belíssima direção de arte, a trilha sonora envolvente e, claro, o sotaque dos personagens que traz um inesperado conforto em meio ao caos. É como um café passado no campo servido durante um velório. Você está numa situação dolorosa, mas por um breve momento aquele aroma familiar oferece alívio, ainda que passageiro.


O jogo é um RPG de ação que mistura elementos de roguelike e tenta tornar a experiência mais leve e acessível, embora isso nem sempre funcione. Ainda que não haja a necessidade de um farming massivo para evoluir o poder do personagem, a mecânica punitiva típica do roguelike, em que ao morrer o jogador volta do início, continua sendo uma pedra no sapato para quem não está habituado ou costuma evitar o gênero, como é o meu caso. Mesmo que ficar forte não seja algo difícil, ter que recomeçar a cada morte, muitas vezes por um pequeno descuido, pode gerar uma frustração precoce com a experiência.
Como em todo ARPG, existe uma árvore de habilidades e também um sistema de bênçãos bem simples de entender, e em poucos minutos o jogador já estará familiarizado com tudo. Além disso, é possível adquirir equipamentos e coletar vantagens durante as runs, ao custo de ouro conquistado ao derrotar inimigos e abrir baús.


Particularmente, o que mais me prendeu ao jogo foi a narrativa. Apesar de o gunplay proporcionar prazer, Hell Clock não conseguiu me fazer superar minha resistência ao gênero roguelike. Repetir andares e enfrentar os mesmos inimigos e chefes várias vezes gerou um certo tédio, que só cedi à minha sede de conhecimento e à curiosidade de descobrir como o jogo reescrevia a história de Canudos e o que o desfecho da trama reservava.
Uma volta ao contrário
Hell Clock (Relógio do Inferno) apresenta um sistema de tempo que pressiona o jogador a concluir as runs dentro de um limite, e há até habilidades específicas para lidar com essa corrida contra o relógio. Mas o detalhe curioso é que essa mecânica é opcional. Sim, uma das mecânicas centrais do jogo pode ser simplesmente ignorada pelo jogador. Tudo bem, isso torna a experiência mais acessível, mas quando a mecânica base — o relógio — de um jogo chamado Hell Clock não é sólida o suficiente para se sustentar como algo essencial, é inevitável questionar sua real importância.
Hell Clock vale a pena?
Ainda que haja um problema sério na construção de sua mecânica central, Hell Clock se apoia em boas referências e lança luz sobre um dos períodos históricos mais perturbadores do Brasil, fazendo isso com um apelo cultural que realmente faz nossos olhos brilharem. O jogo é divertido e acessível até certo ponto. Não é exatamente a melhor porta de entrada para o gênero roguelike, mas, considerando o conjunto da obra, é possível afirmar que a Rogue Snail entrega um dos melhores jogos nacionais já feitos.
Nota do The Clutch: 8
| Prós | Contras |
|---|---|
| Um dos melhores jogos brasileiros já feitos | O próprio jogo acaba questionando a relevância de sua mecânica central |
| Uma história real e dolorosa não apenas contada, mas, de certa forma, reescrita | Apesar da proposta de acessibilidade, pode ser punitivo demais para quem não está familiarizado com o gênero roguelike |
| Gunplay prazeroso | |
| Direção de arte digna de elogios |
Para a elaboração deste review, nossa jornalista recebeu uma cópia de Hell Clock fornecida pela Rogue Snail.




